domingo, 13 de julho de 2008

Renato Russo e Picasso (sem trocadilhos)

Não é pouca gente que tem uma análise, teoria ou crítica sobre Renato Russo. Mas dias desses comecei a pensar em uma tese que me pareceu um pouquinho original, a ponto de arriscar dividi-la com vocês. Antes, porém, devo explicar que aqui em Brasília parece haver três tipos de roqueiro (com ou sem banda) — os que desprezam totalmente o Renato; os que acham o começo da Legião legal, mas a partir do quarto ou quinto disco a coisa foi ficando ruim; e, por fim, os que acham o cara tão foda que não conseguem sair da sombra dele.
Calma. Se você não se sentiu representado por nenhuma das categorias, digo que eu também não me sinto. Eu gosto pacas de Legião. E continuei gostando mesmo nos discos finais. ‘Meninos e Meninas’, ‘Teatro dos Vampiros’, ‘Vinte e nove’ figuram entre minhas músicas prediletas da banda, ao lado ‘Geração Coca-Cola’ e ‘Tempo Perdido’. Mas devo dizer que sempre me senti um estranho na minha turma, formada por caras que ou não dão muita bola pra Legião ou só curtem o começo.
Minha teoria parte da idéia de que o Renato não seria tão popular se ele não tivesse dado a guinada que deu a partir do ‘Quatro Estações’. Tudo bem, ele já tinha feito ‘Eduardo e Mônica’. Mas nos quarto, quinto e sexto discos ele arrisca uma poesia tão cotidiana que assustou de montão os roqueiros. Falo de versos como "Me empresta um par de meias e a gente faz uma feijoada", ou "Deixo a onda me acertar", ou "Acho que gosto de São Paulo e gosto de São João", ou ainda "Ela me disse que trabalha nos Correios e que namora um menino eletricista". Não me esqueço do dia em que, depois de ouvir o ‘V’ e ter achado ‘Vento no litoral’ meio brega, abri a janela e vi o rapaz que lavava os carros lá de casa todo feliz cantado a tal canção, que tocava na rádio que ele costumava ouvir (também brega para mim).
Bruno Golemvsky, ator que encarnou Renato na peça teatral sobre a vida dele, disse uma vez que o líder da Legião podia ser um artista cult, mas quis ser popular. Ele mandou bem demais quando falou isso. Porque o lado popular de Renato foi mesmo uma opção. Ele já tinha demonstrado erudição e capacidade de compor versos complexos, mas decidiu mudar. Nenhum outro roqueiro brasileiro foi tão ousado como Renato, nem tão bem sucedido ao promover uma guinada na forma de compor.
Mas só pode fazer isso quem já acumulou muita bagagem. Renato leu, consumiu muita música, era íntimo da obra de grandes autores. Por mais que ousasse, não corria o risco de regredir e escrever algo de má qualidade. Um equívoco aqui outro ali, é claro, podiam acontecer. Mas ele havia estabelecido uma capacidade tamanha de escrever letras de canções que conseguiu produzir versos simples, mas nada simplistas.
Quando ouço as músicas da fase final da Legião, além de me inspirar a escrever de forma cada vez mais cotidiana, lembro daqueles vários esboços, complexos pacas, que Picasso fez de um touro até chegar à forma final, composta de cinco linhas. No final, Renato parecia compor assim. Economizando nos traços, mas não no significado de suas canções.
PS: Pros desafetos que pensaram que me encaixo no terceiro tipo de roqueiro brasiliense, que não conseguiu sair da sombra de RR, só tenho uma coisa a dizer: vocês estão enganados.