Amanhã, quarta-feira, é dia de recomeço. A apresentação no Jogo de Cena marca a estreia de um show que vem sendo preparado há cerca de três meses, com uma nova formação: Ju, na guitarra; eu na voz e violão; e a presença especialíssima de Ataide Matos, no violoncelo. Professor da Escola de Música de Brasília, lutier, com algumas décadas dedicadas à música erudita, Ataide é uma figura rara. Raríssima. Não só pelas histórias surreais e divertidíssimas que coleciona -- que vão de acidentes inusitados durante apresentações a experiências com projeção astral. O que também o torna especial é a coragem de olhar sem preconceitos para a música popular e procurar, como ele mesmo diz, "aprender" com ela.
Ataide gravou violoncelo em algumas músicas de 'Dias mais tranquilos', meu segundo disco. No começo do ano liguei para ele e pedi a indicação de algum aluno que pudesse participar desse novo show, em formato quase acústico. Pensava que talvez pudesse encontrar algum jovem violoncelista que gostasse de ouvir rock e quisesse fazer parte de um projeto assim. Para minha feliz surpresa, Ataide indicou ele mesmo. Aceitei, é claro. Mas morrendo de medo. Afinal, o que um "músico de verdade" (expressão que ele odeia, por sinal) pensaria das composições que crio em parceria com o Ju? O cara que conhece peças de Mozart, Beethoven, Bach e outros nomes dos quais nem ouvi falar não acharia tudo muito primário?
Passadas algumas horas de ensaio, entre uma história hilária e outra, veio uma confissão que eu nunca imaginaria ouvir. Ataide disse que estava nervoso de tocar com a gente, com medo de não conseguir. A música popular, do jeito que as bandas de rock estão acostumadas a fazer, com arranjos sendo criados coletivamente, muitas vezes na base do improviso, era um universo totalmente desconhecido para ele. Daí o receio de não dar conta. Confessado o medo que eu e o Ju também sentíamos, a conversa se tornou franca e muito esclarecedora.
Ele disse que estava em busca de uma nova relação com a música, na qual o artista não seja só um repetidor, mas um criador. Coisa que nós, roqueiros invocados, nos metemos a fazer assim que aprendemos os dois primeiros acordes no violão. Os ensaios com Ataide serviram, então, para aumentar, e muito, minha autoestima. Ele me fez ver que todos esses anos compondo e tocando em diversas bandas me ajudaram a desenvolver uma espécie de saber intuitivo, um domínio de uma forma de cultura popular bastante rica. É bizarro ouvi-lo comparar as linhas de violoncelo que criamos (o Ju bem mais que eu) com estruturas usadas por compositores clássicos. "Esse recurso melódico era muito usado por Beethoven", ele solta de vez em quando, para nosso espanto e constrangimento. "Estamos só tentando imitar o Nick Cave", respondemos.
O que mais admiro na postura de Ataide é a busca de uma nova forma de ensinar música para seus alunos. Ao topar fazer rock com a gente, ele está na verdade aprendendo como funciona a música popular para, depois, tornar o estudo do violoncelo algo mais atraente para seus jovens estudantes. Quantos músicos não desistiram das aulas tradicionais porque não aguentaram o saco de seguir métodos rígidos que insistem na repetição e não estimulam a criatividade? Não seria bom um professor que te ajudasse a ver a relação entre Beatles, Luiz Gonzaga e Mozart? É o que ele tem buscado fazer. E acaba enfrentando resistência de colegas que insistem em colocar o erudito em um nível superior ao popular. Nesses anos todos de rock, nunca encontrei alguém tão punk e revolucionário como Ataide. É uma honra tocar com ele.
No show de amanhã, faremos só três músicas. Mas a partir de maio faremos apresentações completas, que incluirão duas músicas inéditas, compostas recentemente. Espero ver vocês na plateia em alguma delas.
Abraços.