terça-feira, 2 de novembro de 2010

'Aos abutres', obra impecável do Lestics

Bandas que encaram o lema "faça você mesmo" existem muitas por aí. Agora, que fazem tão bem como o Lestics, sei não. Já vai mais de mês que recebi o disco novo dos caras em casa, privilégio dos maiores, e ainda não consegui parar de ouvir. 'Aos abutres' é um dos melhores lançamentos deste ano com certeza, todo bolado, composto, arranjado e produzido pelos caras. Onze canções que mantêm a qualidade autoral de 'Hoje', o disco anterior do quinteto.

O melhor de ouvir Lestics é que eles sabem fazer músicas boas, agradáveis, que dão vontade de cantar junto, e ao mesmo tempo muito bem cuidadas. Os arranjos são impecáveis, com detalhes bacanas a todo momento que complementam as melodias da voz ou fazem o troço ficar tenso e explodir na hora certa. As soluções harmônicas também sempre trazem uma surpresinha que faz toda a diferença. E, claro, tem as letras. Quem gosta de ouvir músicas com letras boas tem a obrigação de conferir o trabalho da banda paulista mais legal que já ouvi até hoje.

Em 'Aos abutres', toda a riqueza sonora que descrevi aí em cima vem acompanhada de palavras esculpidas com cuidado por Olavo Rocha, o melhor letrista do rock brasileiro na atualidade (na minha modesta e convicta opinião). Rimas elegantes e nada óbvias te levam por um turbilhão de imagens e reflexões sobre a vida, com profundidade rara que só poetas observadores da gente sabem fazer.

Olavo é um poeta. Às vezes, me lembra Julio Cortázar e seu manual de instruções em 'Histórias de cronópios e famas', descrevendo passo a passo uma cena do cotidiano. Ele já havia feito isso em 'Dois perdidos', canção da época dos Gianoukas Papoulas, e em uma das estrofes de 'Plano de fuga', do 'Hoje'. Neste novo álbum, em 'Elevação', ele nos faz enxergar todos os instantes de uma pessoa pegando o elevador e indo a um difícil encontro. Tomo a liberdade de dividir os versos com vocês:

Aperta o botão. Espera.
Abre a porta, olha o degrau
da caixa vermelha e fatal
como a boca de uma fera

Escolhe o número tal
do andar do apartamento
do prédio espetado no centro
da sua cidade natal

Faz silêncio e fica atento
ao barulho da polia
ao cabo que se desfia
e assovia como o vento

Recita a Ave-Maria
que esse elevador antigo
não calculou o perigo
de chegar onde queria

Era o seu último abrigo
Atravessa o corredor
tira do bolso o rancor
fecha a porta e vem comigo

Como em 'Elevação', Olavo aponta seu olhar para o drama moderno que é a perda de autonomia nas nossas vidas. Como heróis trágicos e urbanos, jogamos fora nossa vida "tentando agradar quem não se importa e dando a quem se importa muito pouco". Somos esse sujeito que "dorme e acorda cansado de esperar pelos dias de glória", que está à mercê de um destino que pode nos fazer "dormir como um homem de bem e acordar como fora-da-lei" e vive numa terra de cegos, "onde quem tem um olho é solitário". Vivemos um tempo 'Vazio': "Quase tudo faz sentido, mas não tem importância".

A salvação, ou os momentos de prazer pelo menos, parece residir na traquinagem infantil ('Dorme que passa': "Mordida de urso dói / Fumar dinamite dói / Brincar bem bonzinho não dói, mas também não tem graça") e no encontro amoroso descrito, mais uma vez com rimas elegantes, em 'Parto normal': "As flores no espelho / Os quadros no chão / Os livros embaixo da cama / O Zé Colméia na televisão / O calor do seu colo / O barulho da rua / A última cena de um sonho / A minha boca colada na sua / O dia nasceu de parto normal / E não importa a cara que ele vai ter / A gente vai gostar dele igual".

E como os caras levam a sério o lema "faça, e faça bem, você mesmo", eles nos presenteiam com um site bonito e superprático, onde precisamos clicar apenas uma vez nas capas dos discos (já são quatro!) para os recebermos inteirinhos e de graça nos nossos computadores, e clipes made for YouTube que comprovam o talento e a criatividade de Olavo, Lirinha, Marcelo Patu, Umberto Serpieri e Xuxa. Como esse aí embaixo, de 'Travessia', que abre o disco.