Foi só uma comemoração dessas que os jogadores de futebol adoram fazer, mas o resultado foi o mesmo do famoso beijo criado por Nelson Rodrigues. Depois de marcar seu primeiro gol com a camisa do São Paulo, o atacante Richarlyson se uniu a outros dois companheiros de time e mandou ver nos passos de uma coreografia funk. Pôs as mãos nos joelhos e balançou os quadris, primeiro para a esquerda, depois para a direita. Os outros dois jogadores fizeram a mesma coisa, mas Richarlyson ultrapassou um limite não permitido aos machos latinos: dançou bem demais. Enquanto os companheiros demonstraram toda a falta de gingado esperada dos homens-que-são-homens-mesmo, Richarlyson mostrou uma destreza que poderia ser simplesmente admirável. Mas foi seu pecado.
Apesar de não ter beijado nenhum homem na frente de todos, como faz Arandir,
em O Beijo no Asfalto, Richarlyson se tornou vítima da mesma perseguição que Nelson Rodrigues imaginou para seu personagem. Assim como acontece na peça, o jogador acabou julgado pela mídia e enfrentando problemas na justiça só porque agiu de uma maneira como os outros acham que um homem não deveria agir e, assim, foi “acusado” (e o tom é mesmo de acusação!) de ser gay.
Se na peça há o jornalista sensacionalista, que quer vender mais jornal, no “caso Richarlyson” entram os comentaristas de mesa redonda (que ficam tentando descobrir se é verdadeiro o boato de que um jogador irá assumir sua homossexualidade), os dirigentes de clube de futebol (com suas asneiras pronunciadas na televisão) e os “idiotas” da Internet (que mais uma vez mostram o quanto são mesmo idiotas e inventam piadas e vídeos que conseguem ser tão tristes quanto preconceituosos). Se na ficção existe o delegado que quer se promover, na vida real aparece o juiz infeliz que aproveita uma sentença para desrespeitar o jogador e ofender a homossexuais e negros.
E aí a tragédia brasileira está pronta para ser novamente encenada. Uma tragédia deprimente, na qual a velha mania de julgar os outros pela aparência parecem não ter fim. Na qual só existe espaço para a visão estreita que não admite outras formas de ser homem a não ser a do heterossexual contido e reprimido nos seus gestos, de fala grossa e viril, que não “exagera” na hora de demonstrar alegria ou tristeza, medo ou empolgação.
O que a história envolvendo o jogador do São Paulo mostra não é só o medo (e só pode ser medo) que o brasileiro ainda sente dos homossexuais. O caso deixa evidente também o quanto somos presos a uma idéia restrita e pequena do que é ser homem. Na verdade, pouco importa se Richarlyson é gay ou não. Pois a primeira acusação feita a ele foi a de ser não-homem, a de agir em desacordo com o que se espera de um “homem”.
Por isso, deixo a ele minhas felicitações. Porque esse modelo de homem que nos impõem desde que nascemos aqui no Brasil, e que ele desafiou, é um dos mais ridículos que poderia existir. Ser “homem” no Brasil é triste. É patético. E nessa história toda, o único que não tem sido patético é Richarlyson, como mostrou domingo passado no Fantástico, concluindo sua entrevista com um desejo que deveria ser o de todos nós: “Que as pessoas possam viver da maneira que se sintam bem e que as outras tenham a consciência de que cada um tem o direito de viver a sua vida da maneira que ache melhor”.