segunda-feira, 30 de julho de 2007

E você sempre vê apartamentos acesos

"Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer". (Clarice Lispector)

Ontem tive um medo pior que o de morrer. Senti medo de não ter existido. Foi lendo o livro que reúne as entrevistas que Clarice Lispector fez com personalidades brasileiras para a revista Manchete, entre maio de 1968 e outubro de 1969, e para a revista Fatos e Fotos: Gente, entre dezembro de 1976 e outubro de 1977. Já escritora reconhecida e admirada, as entrevistas serviam à Clarice como forma de complementar a renda. E por ser quem era, ela conseguia arrancar intimidades de gente como Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Chico Buarque, Millor Fernandes, Vinícius de Moraes e tantos outros.

O método de entrevistas de Clarice era fantástico. Pediu a Nelson Rodrigues, por exemplo, a verdade, e ouviu confissões tocantes do gênio, como quando ele fala que sua amizade por Otto Lara Rezende não era correspondida: "O Otto nunca me me deu um telefonema. Estou dizendo isso com a maior, a mais honrada, a mais inconsolável amargura".

É de Nelson, aliás, uma das mais saborosas entrevistas. "Do ponto de vista amoroso encontrei a Lúcia. E é preciso especificar: a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal", fala o escritor em determinado momento. Ao que Clarice responde: "Ah, Nelson, isso é tão verdadeiro".

Pela relação que tinha com seus entrevistados podia, por exemplo, propor aos poetas e compositores que criassem ali, de improviso, alguns versos. Na entrevista com Chico Buarque, por exemplo, escreveu:

_ Você quer fazer um versinho agora mesmo? Para você se sentir não vigiado, esperarei na copa até você me chamar.

Chico riu, eu saí, esperei uns minutos até ele me chamar e ambos lemos sorrindo:

Como Clarice pedisse
Um versinho que eu não disse
Me dei mal
Ficou lá dentro esperando
Mas deixou seu olho olhando
Com cara de juízo final

A leitura de 'Entrevistas' (Rocco) seguia fácil e estimulante na madrugada de domingo até que cheguei à conversa com Oscar Niemeyer. E foi lendo aquelas páginas que caiu a ficha: Brasília quase não existiu. Antes de ser contruída, era uma idéia absurda para muitos. E mesmo depois de inaugurada, a cidade que me formou e me faz existir quase foi extinta, numa luta de forças políticas que queriam manter a capital no Rio. Brasília era ainda uma criança quando Clarice entrevistou Niemeyer e, para a escritora, era um grande vazio, um símbolo da morte.

A entrevista de Clarice é corajosa. Ela pergunta seguidas vezes ao criador o que ele pensa sobre suas impressões a respeito da nova capital. Uma hora ela provoca: "Por que você acha que escrevi: Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer". E Niemeyer diz: "Por que Brasília lhe parece uma cidade sem vida. Quando Le Corbusier comentou que Brasília estava ameaçada de abandono pelo governo de Castelo Branco, ele respondeu: 'É uma pena! Mas que belas ruínas teremos.'".

Que visão assustadora, angustiante, imaginar Brasília uma ruína brasileira, como diz Caetano em 'Fora da Ordem' - "Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína". Imaginei-me, primeiro, personagem de um filme insólito, solitário andando pelas ruínas monumentais de Brasília. Depois, percebi que sem a cidade não seria o que sou, mesmo se tivesse nascido em outro lugar.

E daí veio uma súbita consciência da responsabilidade que nós, brasilienses, por nascença ou opção, temos. A de dar vida a uma cidade. A de fazê-la pulsar, criar, falar e fazer sentido para o resto do mundo. Em nenhum outro lugar faz tanto sentido ser artista como em Brasília, um esqueleto que nasceu sem carne, órgãos vitais e coração. Uma cidade que nasceu antes de viver, sem povo. E povo se faz com identidade, com cultura.

E de repente, assim, numa madrugada fria tão característica de Brasília, entendi porque sempre me emociono quando ouço Renato Russo cantar "E você passa de noite e sempre vê apartamentos acesos". Sempre achei que esse verso era a cara de Brasília. Que bom, por que as luzes acesas rompendo a escuridão nas superquadras é sinal de vida.