segunda-feira, 23 de julho de 2007

Fosse Brasília uma bailarina

Sou muito racional. Talvez por isso, quando mais novo, sentia dificuldades em ver espetáculos de dança. O que eles querem dizer quando entortam o corpo desse jeito? Era o que eu mais me perguntava. Recentemente, passei a freqüentar um pouco mais apresentações de dança em Brasília. E me surpreendi ao ver que amo dança contemporânea. É perfeita para uma mente racional como a minha. Faz a gente pensar. Muito.

Das apresentações que vi, uma me marcou em especial. ‘Brasília – cidade em plano’ é o espetáculo que a Companhia Anti Status Quo (ASQ) apresentou no Núcleo de Dança de Brasília. Devo avisar que vou falar como leigo. Aliás, por não entender nada de dança, posso ser considerado um exemplar real e sincero do que chamamos de “público em geral”. E esse exemplar de público achou o espetáculo um “retratão” de Brasília, cidade que amo profundamente, sem deixar de enxergar os defeitos. Soubesse eu amar as pessoas como amo minha cidade, seria mais feliz.

Quando entramos na sala onde ocorre a apresentação, devemos nos sentar sob a luz azul. Seguiremos a luz azul o espetáculo inteiro. Ela anda, a gente anda atrás. Como se estivéssemos no céu azul da cidade, olhando a capital lá de cima. Do nosso pequeno céu particular, avistamos, no lado oposto da sala, quatro bailarinas nuas, deitadas em linha, em frente ao contorno dos prédios de Brasília. Uma cidade projetada no fundo branco, uma antecipação do que será daqui a 46 anos. Sim, porque agora Brasília nasce. Nua, tal qual as dançarinas. Estas se movimentam de forma tensa, parecem sentir dificuldades para realizar aqueles movimentos. Nascer é difícil e se nasce de pernas para o ar, como as quatro passam, em dado instante, a se mover. Belo.

Então o espetáculo volta ao chão. As quatro dançarinas rolam em nossa direção. Vêm e vão, alternadamente, chegando mais perto, retrocedendo. Um fluxo descasado, com idas e vindas, mas cada vez mais perto de nós. A cidade avança. Do chão preto de linóleo, é erguido, pelas mãos das dançarinas, o mesmo contorno da cidade projetado na parede branca. A cidade brota do chão. Nasce para vestir o corpo nu das meninas, que vestem-se da cidade que representarão para nós a partir daquele instante. Cada uma, uma faceta de Brasília. Uma cidade metamorfoseada em corpos de bailarina.

Essas diferentes facetas da capital somos convidados a conhecer mais de perto, quando, ao sermos libertados da demarcação da luz azul, podemos caminhar livremente pela sala. Descemos do céu e somos lançados nas entranhas da cidade. Uma cidade que pode parecer meio louca, sedutora ou tranqüila. Depende por onde se caminha, onde você se posta na sala. “Vamos sair daqui porque ta muito pesado. Parece que estamos no Conic. Vamos passear no Parkshopping”, digo apontando para o outro lado da sala, onde duas dançarinas parecem realizar movimentos mais suaves.

Minha reação é espontânea, brincalhona. Mas me pega de surpresa. Medos, preconceitos, exclusão social. O quanto disso tudo existe nessa tola brincadeira? A dança faz a gente pensar. Nunca pensei tanto sobre minha cidade como quando assisti a ‘Brasília – cidade em plano’. E aí enxergo um mérito e tanto da coreografia.

Meu pensamento é mais claramente direcionado quando o grupo lança mão de cartões postais, dispondo as fotos em diferentes partes dos corpos de quem dança. Fosse a cidade uma pessoa, teria os ombros e pés formados pelos candangos, os seios por sua sensual catedral (uma provocação apenas?), e a cobrir os olhos, cegando-a ou impedindo os outros de vê-la tal como é, o Congresso Nacional. Essa pessoa, infelizmente, pisaria sobre a Justiça, cotovelos apoiados no joelho, queixo repousando sobre o punho fechado.

Essa cidade, como diz Clarice Lispector, merece uma análise bem menos simplista do que dizer apenas se é bonita ou não. Brasília, resolveu bem Lispector, é como o nosso sonho. Nasceu para ser assim. Meu sonho de Brasília conversou o tempo inteiro com o retrato que o ASQ me ofereceu aquela noite. Em alguns momentos se encaixava, noutros causava até uma certa impaciência (“Ah, Brasília não é assim”, eu pensava), e em outros ainda só deixava a velha pergunta que sempre me acompanhou: “Mas o que elas querem dizer com isso?”

Mas me emocionou chegar ao final do espetáculo com a sensação de que nossos sonhos (o meu e o da companhia) se encaixavam. A visão de uma Brasília que é épica e digna de orgulho, com a pose altiva de quem olha pra frente, ao longe, como que se orgulhando do passado, sem perceber logo ali o excluído e esmagado. Eis minha visão de Brasília e minha visão da cena final. Belo. E intenso.

Brasília, julho de 2006.