Pra chegarmos logo à parte legal da história, vou ser rápido no começo. Em dezembro de 1993, quando ainda tinha 20 anos, embarquei para um intercâmbio de três meses na África do Sul. Lá, morei com uma família muito legal, os Schruaus-alguma-coisa, um nome que nunca consegui pronunciar nem soletrar, e tive a chance de conhecer um país que estava recém saído do apartheid, já presidido por Nelson Mandela.
Antes mesmo de embarcar, tinha comprado um pacote de quatro dias para um safári fotográfico em plena savana africana. Imaginava que seria o ponto alto da viagem e, de fato, estava certo. Foi mesmo cheio de altos. Altos mosquitos, altas temperaturas, altas saudades da civilização. Na van, dirigida pelo guia Gary Freeman (não dava pra esquecer esse sobrenome), conheci o grupo de estudantes, brasileiros que nem eu, que me acompanhariam naqueles dias. Éramos sete, três meninas e quatro meninos.
Eu havia visto fotos fantásticas de safáris, mostrando turistas em jipes maneiros e hotéis cinco estrelas no meio da selva. Estava todo empolgado, até perceber que o caminho que estávamos fazendo lembrava demais as trilhas para o Poço Azul. A ficha começou a cair e eu pensei que de fato, só com aquelas dezenas de dólares que eu havia investido, não ia conseguir acomodações luxuosas. Quando a van parou, vi uma cabaninha de pilastras de madeira sustentando uma lona preta e quatro barracas de lona verde, com camas de exército lá dentro, ardendo sob um sol dos infernos.
Confesso que me senti ridículo, lembrando do Protector Elétrico que tinha levado na mala e percebendo que a tomada mais próxima estava a quilômetros de distância. Depois, me senti azarado, quando descobrimos que o rio que passava pelo acampamento, e que tinha garantido a felicidade da turma da semana anterior, tinha secado, devido ao calor de lascar. Eu começava a calcular quantas horas faltavam pra eu me mandar dali, quando o guia anunciou a primeira expedição pelas matas ao redor do acampamento. E expedição em safári econômico significa andar em fila indiana, sem poder conversar, para não espantar os bichos das redondezas, olhando pro chão com medo de pisar num buraco ou numa cobra (vai saber?) e ficar dando tapas na própria nuca melada de suor pra espantar os mosquitos.
Confesso que tava tão de saco cheio que nem me emocionei quando o guia fez aquele gesto que qualquer um que já viu filmes de guerra sabe que significa parar, porque tem algo ali na frente. Lá longe, víamos um elefante. Macho, a gente descobriu, porque o guia não parou de brigar com as meninas que ficavam falando “olha a orelha, olha a tromba” e com os meninos rindo e repetindo, em tom safadinho, “tromba?”. “Se fosse uma fêmea com filhotes já teria nos atacado. Parem de falar agora”, dizia ele, tentando tirar da gente aquele jeito de adolescente no Simba Safári.
O sol mostrava que restava pouco mais de uma hora para anoitecer quando voltamos para o acampamento. Era hora de entender como funcionava o banho. O seu Freeman mostrou um balde de metal que tinha uma torneirinha acoplada ao fundo, pelo lado de fora. Tínhamos de encher o balde e levá-lo por uns 20 metros até o boxe – um biombo feito de tábuas que impedia que nos vissem pelados do acampamento. Lá, a gente pendurava o balde num gancho e puxava uma corda até o balde ficar acima da cabeça. Aí, era só abrir a torneira, se molhar, fechar a torneira. Passar sabão, abrir a torneira, se enxaguar, fechar a torneira. Olhando o sol se por, não vacilei e tão logo Gary perguntou quem queria ir primeiro, já fui catando o balde da mão dele.
Fiz tudo direitinho, como ele havia ensinado e, com o balde já posicionado sobre minha cabeça, comecei a tirar a roupa. Já tava sem camisa e descendo a bermuda quando ouço um “pou”... “pou”... “pou” atrás de mim. Virei e quase não acreditei no tamanho do elefante que vinha andando calmamente em minha direção. Esse tava perto e era gigante, igualzinho o da foto. Subi a bermuda e fiquei ali, olhando o bicho, enquanto ouvia a garotada toda correndo em nossa direção, felizes da vida. Pararam ao lado do boxe, respeitando minha possível nudez e o bicho vindo, com suas pegadas monstruosas – “pou”... “pou”... “pou”. Parecia que ele ia só passar por nós, assim, que nem transatlântico cruzando o mar lá distante, quando a gente ta na praia. Mas não. O bicho parou e deu uma viradinha de cabeça da qual nunca vou esquecer. Aluguem Parque dos Dinossauros e revejam a cena que o dino coloca a cabeça na janela, com aquele olhão assassino. Foi daquele jeito.
A viradinha de cabeça fez todo mundo gelar, mas ainda havia uma certa calma, porque Gary estava ali do nosso lado, aparentemente tranqüilo. Porém, o elefante resolveu dar uma bufada, tipo touro se preparando para investir contra o toureiro, e um passo em nossa direção. Não bastasse isso, o guia resolveu arregalar os olhos e engatilhar sua espingarda, apontando pro animal. A gritaria foi geral, assim como o princípio de correria. Nesse exato momento, me lembrei de que uma das instruções de Gary era a de jamais corrermos de um animal, mas ficarmos atrás dele, que andava armado e, logo, era a nossa única chance de proteção. Por isso, na melhor das intenções, gritei para todos “don´t run!, don´t run!”, assim mesmo, em inglês, mesmo que fossem todos brasileiros, porque o medo sempre faz a gente agir de forma um tanto tola.
Meu pedido causou um efeito “batatinha frita um dois três” na meninada e todos pararam nas exatas posições em que estavam, como corredores congelados. Agi com a melhor das intenções, mas cometi um grave erro, gravíssimo: ter gritado “don´t run” justamente enquanto eu mesmo, movido pelo pânico, corria desenfreado. O resultado foi que todos meus companheiros de safári me viram passar correndo por eles justamente depois de mandar o “don´t run”, o que gerou uma grave desconfiança sobre meu caráter. Afinal, pareceu que eu queria apenas ganhar vantagem para que o elefante os aniquilasse primeiro e assim me poupasse.
Não me perguntem o que aconteceu depois. Não sei. Só sei que nenhum tiro foi disparado e ninguém morreu. O elefante não nos atacou, mas eu estava muito longe pra ver o momento em que ele se virou e em que direção seguiu. O episódio serviu pra nos convencer de que aquilo era bem diferente do zoológico e tornou a viagem muito mais divertida. No dia seguinte, descobrimos que no acampamento, atrás da barraca de lona, havia um jipe maneiro e fizemos uns passeios refrescantes, com o vento nas nossas caras, em busca de animais selvagens. Vimos zebras, girafas, empalas, búfalos. Depois de quatro dias, voltei com dois filmes de fotos que mostram animais selvagens totalmente fora de foco, 37 picadas de pernilongo somente na mão esquerda e a certeza de que não nasci para ser biólogo.